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Na Loja de Cristais

Como contraponto ao seu trabalho como cientista, Sofia tem um hobby artístico.  Para relaxar ela cria jóias.  Suas criações são abstratas, orgânicas.  As vezes lembram neurônios e outras estruturas biológicas, mas nem sempre.

Desligada do mundo acadêmico procurou uma amiga de infância, proprietária de uma pequena rede de lojas.  A amiga ofereceu para vender suas jóias, em consignação.  O dinheiro era pouco, mas no momento era uma opção.  Sofia então, percorria a loja de cristais à procura de materiais e inspiração.  Os cristais e pedras preciosas brutos, não lapidados eram seus preferidos.

Quando chegou na seção de cristais de quartzo notou um homem de roupas estranhas.  Vestindo uma moda de no mínimo dois séculos atrás.  Mas o que chamou sua atenção não foi isso.  Ele selecionava os cristais usando um pequeno dispositivo.  Nesse momento sua curiosidade científica foi ativada.  O que seria aquele dispositivo?  Quais os parâmetros usados para separar os cristais?

Orfanik estava com alguma dificuldade de se adaptar ao Brasil. A comida principalmente era estranha, contudo haviam algumas vantagens.  O quartzo brasileiro é barato e de boa qualidade para o uso a que se destinava.  Cuidadosamente, Orfanik colocava cada cristal no medidor e escolhia somente os melhores.  Um luxo que nem sempre tinha no velho mundo.  Estava tão concentrado que mal percebeu o toque em seu ombro, era uma senhorita de cabelos arroxeados.

– Com licença.

Ele olhou para ela e respondeu:

– Pois não.

– O que é esse aparelho?

Ele baixou os olhos para o dispositivo em suas mãos:

– Um medidor de transdutância orgonomica.

Ela olhou para ele com um olhar levemente sarcástico:

– Certo… Supondo que o orgone proposto por Wilhelm Reich existisse esse aparelho mediria a capacidade dos cristais de alterar o fluxo dessa energia.

Orfanik reagiu com surpresa, não acostumado a ser compreendido.

– Orgone existe sim e esse aparelho mede transdutância.

– Certo…

Sofia começou a se virar para ir embora.  Nesse instante Orfanik lembrou-se do sonho, o rosto, o cabelo.  Sem pensar muito ele disse:

– Eu posso provar.

O olhar cético de Sofia dispensava palavras.

– Não aqui.  Aqui e agora não tenho como demonstrar, mas no meu laboratório sim.  O experimento é simples.

Sofia retrucou:

– Os métodos de Reich não eram científicos.

Orfanik respondeu:

– Realmente, ele era um visionário, muito inteligente e um péssimo cientista.  Suas hipóteses eram falhas, seus métodos amadorísticos.  Isso fez com que suas idéias fossem desconsideradas por muitos.  Mas eu consegui provar que o orgone existe.  Tive acesso a material original de Reich, que não foi publicado.  Desenvolvi hipóteses sólidas corroboradas por experimentos reproduzíveis.

Sofia sabia o que era ter suas idéias descartadas por preconceito, então resolveu ouvir o velho e estranho cientista.

Sofia

Sofia saboreava um croque monsieur num pequeno café em Paris.  A temporada de turismo iria começar e a cidade logo estaria lotada.  Ela já sentia saudade mesmo antes de voltar ao Brasil.
Sua cabeça pulava de um assunto para outro, mas sempre voltava para sua carreira em medicina experimental .  Ser expulsa da Université Montpellier não fica bem em nenhum currículo.  Sua tese de doutorado estava quase pronta, “Pseudo Potenciais Evocados Induzidos por Ressonância Eletromagnética”.  Ela sentia muita raiva, ser punida por estar certa era o máximo da injustiça.  Entre uma mordida e outra ela lembrou as palavras de seu pai:
– Estar certo não é suficiente.
E não era mesmo.  Depois de um ano meio de discussões com o orientador de sua tese ela resolveu mostrar de forma inequívoca que estava certa.  Usando o próprio cérebro, conseguiu mapear as pequenas flutuações elétricas no córtex visual induzidas por uma bobina de alta tensão.  Marcou uma reunião no laboratório com o emérito professor.  Explicou cuidadosa e pausadamente todo o experimento.  Estoicamente aguentou o longo discurso cheio de reprovações que recebeu ao final de sua exposição.  Só perdeu a calma quando ele a chamou de burra.  Nesse instante ela gritou:
-Veja!
E ligou a máquina.  Imediatamente ambos estavam cegos.  Isso durou apenas alguns segundos e não causou nenhum dano cerebral permanente.  No dia seguinte em uma reunião de emergência da Comissão de Ética e Pesquisa ela foi sumariamente expulsa.  A comunidade científica é pequena, poucos dias após, todo mundo que é algum em neurologia sabia do acontecido.  A história é claro havia aumentado e em algumas versões o orientador fora amarrado e eletrodos postos em sua cabeça à força.  Ninguém, ou nenhum cientista respeitável, acreditava que o cérebro pudesse ser influenciado à distância de forma direta.  Sofia contudo acreditava e havia provado.
Nos momentos de sua vida em que se sentia perdida, Sofia sempre fazia algo, um gesto para marcar o momento e romper com o passado. Enquanto terminava de comer ele tomou uma decisão, cortar o cabelo bem curto e tingi-lo de vermelho.  Não, vermelho era muito óbvio iria tingir de púrpura!

No Laboratório

Sozinho em seu laboratório Doktor Orfanik olha pensativo para um capacitor de tântalo.  Toda tecnologia do século 21 é para ele algo não muito confiável, cada instrumento e dispositivo que ele usa fora cuidadosamente construído à mão.  Ainda assim alguma concessão podia ser feita.  Um antigo grimório do século treze aberto na bancada serve de orientação para a construção de uma máquina estranha.  O componente é soldado cuidadosamente, apenas um pequeno filamento de fumaça.  Nesse instante uma luz vermelha acende.  Uma mensagem de algum dos poucos e fiéis seguidores de Orfanik.  Télek saiu da Transilvânia. Isso poderia ser uma boa ou má notícia, provavelmente ruim.  Nada a fazer por enquanto, de volta ao laboratório.
Muitas horas de trabalho depois a máquina está pronta, cada sub-componente havia sido cuidadosamente testado.  Ligada a máquina, ela não funciona.  Sem desanimar, Orfanik re-testa e verifica cada aspecto até que exausto cai no sono.
Quase imediatamente após dormir começa um sonho.  Um dragão azul o persegue em uma caverna.  A cabeça do dragão se transforma na cabeça de Télek.  Orfanik mata o dragão e abre sua barriga.  De dentro retira a maquina na qual trabalhava.  Cada peça da maquina se transforma em um inseto.  Um dos insetos olha para Orfanik e começa aumentar de tamanho.  Orfanik sobe em suas costas e o animal, semelhante a um besouro alça vôo. Logo está em uma cidade e pousa aos pés de uma torre de ferro.  Lentamente a torre se desvanece até desaparecer totalmente.  Quando a torre sumiu Orfanik vê o rosto de uma jovem de cabelos púrpura. Ela diz:
– Olá.
Ele acorda imediatamente. Lembra-se perfeitamente do sonho, corre imediatamente para o computador e inicia uma busca.  Digita: A dama que dissolveu a Torre Eiffel.

 

O Castelo Hunedoara

As marcas de fuligem e a destruição de uma parede do Castelo Hunedoara eram visíveis.  Télek olhava com os olhos semicerrados, contendo a raiva. A parede podia ser reparada, mas os mortos permaneceriam assim.  Murmurou:
– Orfanik!
Orfanik era em parte como ele.  Ambos eram remanescentes de uma era que não existia mais.  Fósseis vivos da era do vapor, Télek porem havia se adaptado.  Tinha nova identidade, seguia os usos e costumes do século 21.  Orfanik nunca se conformara, vivia recluso uma época inexistente.  Um mundo próprio como é comum para os insanos.  Insano e genial, com sua própria ciência e religião, seguia apenas suas próprias leis.  Télek não compreendia porque Orfanik havia reaparecido, nem o motivo das mortes, mas estava decidido a agir.  Os mortos seriam vingados.  Télek subiu em sua motocicleta, corria pelas trilhas pouco usadas, subindo e descendo montanhas.  Lembranças de mais de 120 anos voltavam, muitas coisas nessa região remota ainda permanecem iguais. Quase uma hora depois chegou a uma remota caverna.  Pegou uma lanterna e percorreu os primeiros 50 metros o mais rápido que pôde, parou em frente a uma porta.
Uma porta redonda de madeira e bronze, totalmente coberta por engrenagens e trancas.  Por alguns segundos Télek ficou absorvido pelos mecanismos intricados da estranha porta.  A porta estava aberta, isso não era bom sinal.  Passou pela abertura circular e encontrou uma câmara vazia.  Percorreu o interior da caverna iluminando cada canto com a lanterna.  Todo o interior estava vazio, totalmente limpo.  Apenas a porta permanecia testemunha de que algum dia, alguém estivera naquele local.

A Cidade Sombria

O movimento de caminhões na madrugada irritava prostitutas e traficantes. Essas eram as únicas pessoas nessa região mal freqüentada do centro velho de São Paulo. Uma figura sinistra abriu as grandes portas de um velho armazém, um homem calvo, vestindo roupas estranhas. Com um sotaque difícil de definir ele saudou o motorista: – Por gentileza senhor. Essas caixas precisam ficar no fundo. Eram muitas caixas de madeira, aparentavam muito uso. Os usuários habituais se afastaram, sabendo que o movimento iria afastar os eventuais clientes. Horas depois os caminhões partiram, as velhas portas do armazém se fecharam e o homem em roupas estranhas começou a trabalhar. Seus poucos amigos e seus numerosos inimigos o conhecem como Doktor Orfanik. Seu verdadeiro nome e origem permanecem até hoje com um mistério. Herr Doktor trabalhou a noite toda, abrindo as caixas, instalando e montando aparelhos. A função de alguns dos dispositivos difícil de adivinhar pela aparência, mas na antiga estufa nos fundos está algo facilmente reconhecível. Mesmo pelos vidros sujos pode-se ver claramente o contorno arredondado de um dirigível. Seus planos eram decolar durante a noite, mas o sol já começou a nascer. Observando o céu, Orfanik notou que a cidade estava coberta por uma densa camada de nuvens. Os habitantes de São Paulo olhavam para o dia frio e sinistro e relutavam em sair da cama, porém Doktor Orfanik murmurou em tom baixo: – Perfeito. Graças à nova lubrificação, os painéis do teto da estufa se abriram quase sem nenhum ruído. A nave movida a vapor e sustentada por uma receita exclusiva de hidrogênio e argônio elevou nos céus. As poucas testemunhas no local há muito tempo não confiavam nos próprios olhos. Engolido pelas nuvens escuras o aparelho percorreu os céus da cidade. As pessoas nas ruas olhavam mal humoradas para o céu, sem saber que algo bem próximo de ocultava. Orfanik ligou o captador de cristal e começou a absorver energia das nuvens, absorvido pelos pensamentos: | – Os cientistas são todos uns tolos! Acreditam que as nuvens acumulam apenas eletricidade estática, mas o sol as carrega de energia orgônica. Os cristais faiscavam e brilhavam, absorvendo energia. Essa energia que outros chamam de chi, prana ou vril; mas nosso doutor prefere a terminologia de Wilhelm Reich: orgônio. Essa energia pode, em pequenas quantidades, ser usada para cura ou para destruição. Vários inimigos enfrentaram os raios gerados por esse aparelho e o resultado foi algumas vezes a morte. Orfanik prefere evitar o confronto direto, por isso veio ao Brasil aonde espera que nenhum de seus inimigos o encontre.

Transilvânia, 2 de junho 2011

O Castelo Hunedoara foi atingido nessa madrugada por uma tempestade de raios.  O fenômeno meteorológico foi atípico, pois apesar das pesadas nuvens não havia chuva.  A ala norte sofreu danos severos.  No momento do acidente estavam reunidos no local membros da sociedade filantrópica “Fraternidade do Templo da Rocha Negra”.  Duas pessoas morreram e cinco ficaram gravemente feridas.  A polícia negou envolvimento de um misterioso dirigível que foi visto nas imediações no momento do acidente.  Nas palavras do comissário: ”Dirigível? Que dirigível?”.

Minha Jornada

Os homens da ciência são tolos, para eles tudo se explica pela matéria.  Os místicos são outra espécie de tolos, para quem tudo no mundo material é resultado do mundo espiritual.  Meus antigos irmãos da Fraternidade do Templo da Rocha Negra me ridicularizaram pelos meus estudos sobre a Tábua de Esmeralda.  Quando um raio mortal destruiu o castelo nas montanhas da Carpatia onde ficava aloja da Fraternidade, tenho certeza que eles não acharam engraçado.
A ponte entre a ciência e o conhecimento místico existe, e estou cada vez mais próximo de encontrá-la.  É surpreendente que essa jornada tenha me trazido ao Brasil.  Aqui, no novo mundo, eu irei desenvolver minhas idéias integralmente, longe da malta ignorante .